Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há. Estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alivio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá lá um jeitinho” sentimental. Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Por onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassado ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa a beleza. É esse o perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para levar-nos de repente ao céu, a tempo de ainda apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para se perceber. O amor é um estado de quem se sente.
O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita. Não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que se quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado do que quem vive feliz. Não se pode ceder, não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um minuto de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
Miguel Esteves Cardoso, década de 90 do século XX
Há 1 semana
8 comentários:
Para mim acho que o que o texto fala é essencialmente de paixão. Para mim o amor é o que fica depois da paixão, tal como ele relata no texto, é realmente o juntar os chinelos e não o estado de alma que leva as pessoas a "romance, gritaria, maluquice, facadas, abraços, flores".
O que é isso de misturar facadas com flores?
Violência doméstica?
Discordo.
Tenho um amor verdadeiro, profundo e infindável pelos meus filhos.
Pelo meu marido tive paixão, actualmente tenho amor, sem facadas, apenas discussões/desentendimentos e noutras ocasiões algumas flores.
Faz parte da vida.
:)
Carlos
Eu tenho esse texto ainda em papel do MEC. Por vezes ele escrevia coisas assim. NO geral nao gosto muito mas como sempre nem tudo é bom nem tudo é mau. E quando lhe li o texto, deve ter sido no Se7e ou no Independente, fiquei abismado porque era o meu sentir...
Não é magnífico? Quem ousa, mais do que pensar, agir assim? Achei-o tão meu, que o guardo ate hoje...
Abraço amigo
Daniel Lobinho
________________________O coração guarda o que se nos escapa das mãos.
Sim, é sempre assim!
Um abraço amigo «««
Obrigado por teres encontrado o texto que tanto adorei no sábado à noite! Foi sem sombra de dúvida o ponto alto da noite! Copiei para o meu blog!
Abraços!
como muitos outros textos do MEC, é um texto fabuloso: iluminado e iluminador.
Este texto é magnifico, já o conhecia; mas lido como foi, só com aquela luminosidade e principalmente com a força e inspiração que a Nocturna e o Ophius lhe deram, ganhou ainda mais sentido.
Como um improviso parece ter sido ensaiado, não é verdade?
Abraço forte e espero que o canto dominical tenha sido bom.
Fico tão feliz por teres colocado aqui o texto: já estava a pensar que não conseguiria reencontrar!
Fica assim registado um momento áureo do nosso jantar.
PS: gostei muito da descrição do teu perfil... é tão bom quando Deus ocupa o lugar central das nossas vidas :)
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